PL de dados pessoais em trâmite no Senado deveria trazer maior proteção à liberdade de expressão

No último dia 3, o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) apresentou relatório favorável ao projeto de lei (PLS) 330/2013, que visa regulamentar o tratamento de dados pessoais no Brasil, na Comissão de Assuntos Econômicos, com a proposta de um substitutivo. A ARTIGO 19 – após análise do texto apresentado – ainda possui questionamentos e recomendações com base nos estudos realizados nos últimos anos sobre o assunto.

Notou-se que boa parte da discussão pública realizada não está refletida no projeto, sendo o objetivo desta nota detalhar ponto a ponto os problemas contidos no relatório apresentado pelo senador.

1ª RECOMENDAÇÃO

Em primeiro lugar, a ARTIGO 19 compreende que uma lei de proteção de dados pessoais tem ligações estreitas ao direito de acesso à informação pública e, portanto, um projeto de lei nesse âmbito deve  conter menções expressas à lei nº 12.527/2011, conhecida como “Lei de Acesso à Informação” (LAI), já que, eventualmente, o direito de acesso à informação pode tanto entrar em conflito com o direito à proteção de dados pessoais em situações específicas quanto ser estrategicamente complementar a ele.

O marco regulatório de proteção de dados pessoais não pode servir de obstáculo aos avanços obtidos com a LAI e deve conter dispositivos que assegurem o acesso a dados pessoais quando o interesse público for maior que a necessidade de proteção de dados, como no caso da divulgação de salários de servidores públicos, por exemplo.

No substitutivo apresentado pelo senador Ricardo Ferraço, a menção à LAI é realizada apenas três vezes em todo o documento, nos seguintes trechos:

    • Art. 2º, §3 – que menciona que a LAI deve ser observada quando do tratamento de dados pelo poder público em conjunto com a lei do Habeas Data e a lei que Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal ;
    • caput do Art. 19 – que afirma que os prazos e procedimentos da LAI devem ser observados para o exercícios dos direitos do titular de dados pessoais;
    • caput do Art. 21 – que veda o compartilhamento de dados pessoais entre entes públicos e privados, mas que cita a LAI para respaldar casos excepcionais, como o pedido de acesso à informação.

 

O projeto de lei de dados pessoais também poderia resolver uma lacuna existente relativa à LAI e à proteção da identidade dos requerentes de pedidos de informação pública. O compartilhamento de informações pessoais de requerentes de informação entre funcionários e/ou entes de órgãos públicos é uma prática grave e recorrente que afeta frontalmente a capacidade que cidadãos brasileiros têm ou terão de receber informações sobre a gestão pública com qualidade, transparência e de forma não-discriminatória. O acesso a dados pessoais dos requerentes de informação deve ser limitado somente à necessidade do servidor público em responder à solicitação, conforme previsto pelo §1º do artigo 10 da LAI.

Assim, a ARTIGO 19 recomenda a inclusão de um trecho na seção “Do tratamento de dados pessoais pelo poder público” que disponha sobre a proteção aos dados pessoais de requerentes de informação pública.

2ª RECOMENDAÇÃO

Uma segunda preocupação, apresentada pela ARTIGO 19 durante as discussões sobre o texto do projeto de lei, foi a de evitar interpretações que possam ensejar reivindicações do “direito ao esquecimento”, como uma possível confusão com relação ao direito de cancelamento dos dados pessoais.  O ponto central de nossa proposta é que o projeto de lei não permita a solicitação de exclusão de informações que sejam de comprovado interesse público. Para isso, é necessário uma ressalva explícita ao interesse público quando se tratar do cancelamento dos dados pessoais.

No artigo 5º do PLS 330/2013, ficam instituídos os direitos do titular sobre seus dados, sendo que o inciso VI prevê o cancelamento neste rol. Nossa sugestão é  acrescentar uma ressalva no que se refere a informações com interesse público superior ao direito de cancelamento.

Um caso concreto desse possível abuso sobre o “direito ao esquecimento” – no qual se fundamenta nossa preocupação – ocorreu no México, onde um cidadão pediu ao  Instituto Federal de Acesso à Informação e Proteção de Dados (IFAI) que suprimisse determinados resultados de busca online atrelados ao seu nome. No meio do processo, descobriu-se que o cidadão era dono de uma empresa de transporte, favorecida ilegalmente por governos anteriores, e que os resultados de pesquisas contestados eram justamente aqueles de reportagens sobre os favorecimentos ilegais concedidos à sua empresa. A revista Fortuna, um dos meios de comunicação a cobrir o caso, promoveu ação judicial, argumentando que o pedido de “direito ao esquecimento” atentava contra o direito à informação. Felizmente, a ação foi bem-sucedida e a resolução da IFAI perdeu efeito. Nota-se, portanto, que o primeiro caso emblemático relativo ao “direito ao esquecimento” no México se tratava exatamente de um dos possíveis abusos que a instituição desse direito pode levar.

Por essas razões, a ARTIGO 19 entende que em casos similares ao retratado o interesse público supera o direito do titular dos dados e o conteúdo em questão não deve ser eliminado. Um bom modelo de redação que aborda essa temática encontra-se no inciso V do §3º do artigo 31 da LAI.

3ª RECOMENDAÇÃO

Por fim, a ARTIGO 19 defende que o PLS 330/2013 deve especificar e delimitar o que se entende por  fins históricos, estatísticos e científicos (Art. 4º, Parágrafo Único). Uma pesquisa histórica ou científica, ou que use métodos estatísticos, pode abarcar inúmeros tipos de pesquisa, feitas por diversos atores com variadas finalidades.

Por essa razão, o substitutivo, quando especifica a exceção para  fins históricos, estatísticos e científicos, também deve oferecer uma delimitação dos tipos de atores e finalidades para que uma pesquisa seja considerada histórica, científica ou estatística.

Essa observação também se aplica ao inciso IV do Artigo 11 do projeto, pois o consentimento do titular sobre o tratamento de seus dados se torna desnecessário caso o processo seja “realizado exclusivamente no âmbito da pesquisa histórica ou científica”. Essa é uma disposição que permite a realização de um número alto de tratamento de dados sem que seja conceituado e bem delimitados os alcances de uma pesquisa histórica ou científica. Essa mesma ressalva serve para o inciso II do parágrafo único do artigo 15, que dita as regras para a conservação de dados mesmo após o fim do tratamento.

É necessário adicionar as finalidades de tais pesquisas e vedar que sua utilização para âmbitos nos quais as informações pessoais sejam comercializadas ou compartilhadas de forma ilegal.

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O PLS 330/2013 irá agora para votação na Comissão de Assuntos Econômicos e poderá seguir a plenário após aprovação da Comissão de Constituição e Justiça. A ARTIGO 19 acredita que a matéria deve ser apreciada também pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, conforme sugerido no requerimento apresentado pelo senador  Lindbergh Farias (PT-RJ) no dia 2 de maio.

A avaliação de outra comissão tornará possível a inclusão das recomendações aqui apresentadas e uma análise sobre o projeto com foco mais intenso nos direitos fundamentais dos indivíduos, indo além dos relevantes, porém insuficientes, debates econômicos que circundam o tema.

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