Uso de vídeos como prova em julgamentos está aquém do que deveria, mostra estudo

10 de dezembro de 2015, 15h45

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Apesar da circulação cada vez maior de vídeos de violações a direitos humanos, principalmente as cometidas por policiais, o uso dessas imagens como prova em julgamentos nos tribunais brasileiros ainda está aquém do que deveria.

Essa é a principal conclusão do estudo Vídeo Como Prova Jurídica para Defesa dos Direitos Humanos no Brasil, feito pela Artigo 19 e pela ONG Witness. A pesquisa será lançada nesta quinta-feira (10/12), para marcar o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

O material pretende avaliar o quanto as imagens têm influenciado nas decisões judiciais no Brasil sobre casos envolvendo violações de direitos humanos — em uma época de proliferação intensa de câmeras na sociedade.

Para balizar o estudo, foram analisadas leis, publicações jurídicas e decisões do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro.

A constatação é que juízes, desembargadores e ministros pouco se aprofundam na análise, mesmo que o vídeo seja a prova principal do processo. A comunidade jurídica, de forma geral, também não se debruçou sobre a questão.

Apesar disso, diversos casos provam que, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, o vídeo vem se mostrando uma arma poderosa para expor a verdade e desmentir versões oficiais, como as recorrentes alegações de “auto de resistência” ou “legítima defesa” quando alguém morre em confronto com a polícia brasileira.

Carro de polícia arrasta Cláudia Ferreira, que foi colocada no porta-malas para ser socorrida. Ela chegou ao hospital sem vida.
Reprodução
Nesse sentido, o estudo traz uma análise em detalhes de sete processos judiciais nos quais as imagens de um ou mais vídeos tiveram papel preponderante para o desfecho. Entre eles estão o caso da Favela Naval, ocorrido em 1997, em Diadema (SP), que levou à prisão de um policial, e o de Cláudia Ferreira, filmada sendo arrastada presa a uma viatura no Rio de Janeiro e que resultou em reparação financeira à família pelo governo estadual.

A advogada da Artigo 19 Camila Marques aponta para o potencial do vídeo como forma de impactar os julgamentos e criar jurisprudência em casos de violações a direitos humanos. “Ainda que a pesquisa tenha mostrado que falta reconhecimento formal por parte de magistrados em relação ao vídeo como prova jurídica, claramente verificamos um número expressivo de casos em que, se não fosse o vídeo, o desfecho seria outro. Isso certamente aponta uma tendência, sobretudo em uma sociedade em que mais e mais cidadãos lançam uso de câmeras de celulares para registrar violações.”

Já Priscila Neri, da Witness, afirma que em muitos casos o vídeo é a única forma para se romper com a impunidade. “Quando as vítimas de violência pelas mãos do Estado são pobres, negras e moradoras da periferia, em muitos casos o vídeo tem servido como a única esperança para que os processos por justiça funcionem como deveriam. Vídeos vêm conseguindo desafiar e romper nossa enraizada cultura de impunidade e arquivamento de inquéritos. No entanto, ainda há muito a melhorar: alguns vídeos acabam atrapalhando mais do que ajudando (quando expõem testemunhas em perigo, por exemplo), e outros não conseguem alcançar seu pleno potencial de gerar mudanças concretas. Assim, o potencial ainda é bastante inexplorado, mas ainda mais promissor.”

Ausência de parâmetros
Com base nos casos analisados, o estudo conclui que não há parâmetros e padrões conhecidos que tenham sido estabelecidos pelo Poder Judiciário para a análise dos vídeos. Isso pode causar tantos reflexos positivos quanto negativos, explicam os autores.

Como ponto positivo, afirmam que é importante que o Poder Judiciário não se debruce demasiadamente na busca por critérios e padrões para o uso do vídeo e muito menos que estabeleça critérios de admissibilidade. “Quanto mais abertas as possibilidades de seu uso, mais potencial ele terá para ser um instrumento democrático, permitindo que todo cidadão com uma câmera seja uma pessoa apta a colher provas para a proteção dos direitos humanos.”

Por outro lado, a falta de padrões gera uma insegurança jurídica. E é justamente essa falta de critérios que não permite à pessoa antever o resultado de uma ação e adaptar, assim, sua conduta. “Em outras palavras, se sabemos quais critérios o juiz avalia quando analisa um vídeo como prova em um processo, podemos adaptar e aprimorar as técnicas para filmar ou mesmo a estratégia para utilizar o vídeo. Em contrapartida, se não conhecemos os critérios, não temos parâmetros para nossa atuação e ficamos a mercê do entendimento de cada juiz sobre o uso do vídeo como prova, daí a insegurança jurídica.”

Guia para defensores e ativistas
Para auxiliar defensores e videoativistas interessados em utilizar imagens como prova em seu processo, o estudo explica como funcionam as provas nos processos penal e civil. Além disso, o documento traz um miniguia sobre como filmar, armazenar e divulgar os vídeos de modo a obter melhores resultados e de forma mais segura.

Veja os sete casos analisados detalhadamente no estudo

Favela Naval
Em março de 1997, reportagem do Jornal Nacional apresentou um vídeo que mostrava policiais militares em operação de combate ao tráfico na Favela Naval, em Diadema (SP), cometendo agressões físicas e verbais contra as pessoas que eram abordadas. Os PMs ainda extorquiram moradores e dispararam duas vezes em direção a um carro, causando a morte de Mário José Josino.

Ação civil pública sobre protestos em São Paulo
A Defensoria Pública do estado de São Paulo entrou com ação civil pública contra o estado de São Paulo pelo desrespeito ao direito de liberdade de expressão, ao direito de reunião e ao direito à cidade causado pelo uso repressivo de sua Polícia Militar. A repressão sistêmica e os abusos são apresentados a partir de oito manifestações políticas, esportivas e festivas entre 2011 e 2013. A Defensoria Pública pede que o estado de São Paulo elabore um protocolo de atuação da PM nas manifestações que respeite os direitos humanos e os protocolos e padrões internacionais. Além disso, pede uma indenização no valor de R$ 8 milhões, a serem revertidos para o Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos.

Advogados ativistas

No dia 1º de julho de 2014, na Praça Roosevelt, centro de São Paulo, durante reunião para debater eventos no período da Copa do Mundo que cerceavam o direito de manifestação e greve, dois advogados ativistas, Daniel Biral e Silvia Daskal, foram detidos e agredidos ao pedirem para uma policial militar da Tropa de Choque, que estava cobrindo a identificação de seu uniforme, que se identificasse. Os advogados foram acusados de terem agredido fisicamente e desacatado os policiais militares. O momento da detenção foi registrado em vídeo por um observador.

Cláudia Silva Ferreira

Em 16 de março de 2014, Cláudia Silva Ferreira foi baleada durante troca de tiros entre a Polícia Militar e traficantes do Morro da Congonha, em Madureira, cidade do Rio de Janeiro. Policiais militares colocaram Cláudia no porta-malas da viatura alegando que iriam levá-la a um hospital. Durante o percurso, o compartimento abriu, e Cláudia ficou pendurada pela roupa, sendo arrastada pelo asfalto por mais de 250 metros. Um cinegrafista amador em um carro filmou tudo com o celular. Apesar dos gritos dos pedestres e de outros motoristas, os policiais só pararam quando o sinal fechou e então colocaram Cláudia de volta no porta-malas. Ela já chegou ao hospital sem vida.

Major Pinto e tenente Bruno — flagrante forjado

Em 30 de setembro de 2013, durante manifestação no centro do Rio de Janeiro, o major Fábio Pinto Gonçalves e o tenente Bruno César Andrade Ferreira tentaram forjar um flagrante de porte de morteiros (espécie de rojão) contra um manifestante adolescente. Os policiais, entretanto, foram desmentidos por vídeos que mostravam que o tenente Bruno carregava os morteiros em sua mão muito antes da detenção.

José e Ponte jornalismo
Na madrugada de 17 de março de 2014, policiais militares entraram sem mandado judicial no prédio e apartamento de José* (nome fictício para preservar a identidade), que é adolescente, sob a alegação de que ele havia cometido um roubo a mão armada próximo ao local. Mesmo sem evidencias concretas além do testemunho policial, o juiz da Vara da Infância e Juventude sentenciou José à internação na Fundação Casa por ato infracional equivalente a roubo duplamente qualificado.

Anencefalia e Anis
Em junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde propôs a ADPF 54 para pedir que fosse descaracterizada do Código Penal a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, uma condição de má-formação genética que leva o feto a não desenvolver o cérebro e, por isso, morrer durante a gravidez ou após o parto.

Clique aqui para ler o estudo.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-dez-10/uso-videos-prova-aquem-deveria-estudo

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