Direito à verdade x “direito ao esquecimento”: o Brasil não quer esquecer

 

por Laura Tresca e Marcelo Blanco, da ARTIGO 19

É possível conciliar o direito que temos a conhecer a verdade com o direito sobre a intimidade dos indivíduos? Existe uma linha clara que delimite a vida pública da vida privada?

O Dia Internacional para o Direito à Verdade, celebrado nesta sexta-feira (24), surge como uma boa ocasião para discutirmos pontos sensíveis existentes na relação entre o direito à verdade e à memória e o chamado “direito ao esquecimento”.

Em diversos países da América Latina, movimentos sociais têm atuado nas últimas décadas com o objetivo de passar a limpo as tristes e censuradas páginas das ditaduras que governaram boa parte da região durante a segunda metade do século 20. Esses movimentos têm se organizado com a convicção de que sem o conhecimento das mazelas de nossa história, estamos condenados a repeti-las em algum momento no futuro.

Por essa razão, é de suma importância que mesmo os mais brutais episódios protagonizados pelos regimes civis-militares não perdurem para sempre no sigilo, mas que, ao contrário, sejam trazidos às claras para que toda a sociedade tenha ciência dos abusos e atrocidades cometidos por governos autoritários que outrora se vendiam como detentores da moralidade, respeitabilidade e integridade. Ademais, o acesso aos registros dessa época também é relevante para que as vidas das inúmeras vítimas antes incógnitas sejam tratadas com o devido respeito e dignidade.

A cultura do sigilo que reina sobre esse tema é herança compartilhada na maioria das nações latinoamericanas e a cobrança por transparência e acesso à informação se mostra a cada dia essencial para a consolidação das novas democracias. Contudo, o que notamos é que o modus operandi das instituições públicas, em especial as ligadas à Segurança Pública e à Justiça, ainda consiste em reter o maior número de informações para si, impossibilitando o acesso público a dados históricos.

Por outro lado, a emergência da Era Digital no início do século 21 trouxe consigo uma série de novos desafios legais, sendo a proteção à privacidade um dos mais importantes. Claramente, a eternização de certas informações sobre a vida de pessoas não é um assunto banal, sobretudo se tais informações comprometem o indivíduo indefinidamente por ações passadas ou ainda se essas informações não passem de boatos que prejudicam suas vidas íntimas.

Por essas razões, passou-se a aventar, inicialmente na Europa, a possibilidade da criação de um direito reconhecido em lei que permita às pessoas requerer a desindexação¹ de informações sobre indivíduos dos buscadores online. Trata-se do chamado”direito ao esquecimento”.

Contudo, mesmo sabendo que o cancelamento de certas informações sobre determinada pessoa pode ter justificativas legítimas, vale ressaltar o valor maior da informação pública. Episódios históricos ou de alta relevância para a vida social moldam a cultura e a própria vida das pessoas que compartilham um tempo e um espaço. Eles devem ser protegidos e estar sempre disponíveis ao público, assim como não podem ser alvo de “pedidos de esquecimento” sob hipótese alguma.

A ARTIGO 19 acredita que a criação de um mecanismo jurídico específico para o “direito ao esquecimento” não é necessária no contexto brasileiro e latinoamericano e poderia gerar uma série de distorções sobre o direito à privacidade assim como prejudicar o livre fluxo de informações. Prejudicaria, assim, o direito de acesso à informação, em especial no que toca a informação de utilidade pública a respeito de governantes ou personalidades de grande projeção.

Tendo esse contexto em vista, recomendamos que soluções existentes sejam aplicadas, como as oferecidas por leis relacionadas à privacidade, responsabilização ulterior no âmbito civil e também soluções baseadas nos termos e condições de uso dos provedores, ao invés de reconhecer o “direito ao esquecimento”.

O Dia Internacional para o Direito à Verdade é uma conquista histórica de movimentos sociais que lutaram e ainda lutam pelo reconhecimento de uma história não contada. Já o debate sobre o “direito ao esquecimento” tem esquentado nos últimos anos e trata-se de assunto que deve contar com um amplo debate na sociedade civil e entre os legisladores, contudo, o que vemos é que por diversas vezes, o debate feito nacionalmente trata-se de uma simples importação de um conceito que se conforma à realidade europeia.

Não raramente ignora-se o passado recente das ditaduras latinoamericanas e a total inadequação para a implementação de um “direito ao esquecimento” brasileiro. As possibilidades de abuso e a própria falta de necessidade legal para criação de um direito específico para a desindexação ou cancelamento de informações online sobre pessoas fica latente quando analisamos a realidade legal e social brasileira.

 

[1] Desindexar significa retirar determinado conteúdo da lista de resultados da busca feita em um buscador online, ou seja, apesar do conteúdo não ser excluído da internet, ele não mais aparecerá nas buscas dos usuários e só será acessível por quem tiver o endereço eletrônico da página em que o material se encontra.

 

Foto: Wikipedia | CC BY 3.0

Icone de voltar ao topo