Blogueiros viram alvo principal de violência contra comunicadores no Brasil, diz ONG

BBC1

“Criança fica com o pé preso em escada rolante de shopping no Maranhão”. Quem acessa o blog de Ítalo Diniz encontra uma página congelada em 13 de novembro de 2015. Na noite daquela sexta-feira, o blogueiro morreu após levar quatro tiros em uma das principais ruas de Governador Nunes Freire (460 km de São Luís).

O caso ilustra uma das conclusões de um relatório divulgado nesta terça-feira, Dia Mundial da Liberdade de Expressão, pela ONG Artigo 19: blogueiros se tornaram o principal alvo dos ataques à liberdade de expressão no Brasil.

Segundo a organização, 37% das violações relacionadas com o exercício da comunicação no Brasil em 2015 foram contra blogueiros. Pelo critério do estudo, graves violações à liberdade de expressão são homicídios, sequestros, tentativas de assassinato e ameaças de morte.

Esses comunicadores enfrentam situações de risco, intimidação e violência, sobretudo em cidades pequenas. Em 60% dos casos, por denunciarem irregularidades no poder público – o restante teria relação com críticas e opiniões (23%) e investigações (17%) feitas por tais profissionais.

A situação se agrava, diz a Artigo 19, porque agentes de Estado (políticos, policiais e servidores públicos) mais uma vez figuram como os principais suspeitos de violações contra comunicadores no país, aparecendo nessa situação em 17 das 35 ocorrências compiladas pela organização.

Violência contra comunicadores no Brasil

Casos em 2015

35

violações graves, sendo:

  • 6 homicídios

  • 7 tentativas de homicídio

  • 22 ameaças de morte

  • 54% dos casos vitimaram blogueiros e radialistas

Wikimedia Commons

E embora não haja elementos que indiquem uma ação institucional do Estado brasileiro contra a liberdade de expressão, a Artigo 19, que é o braço brasileiro da organização internacional Article 19 e está no país desde 2007, critica a falta de medidas específicas do poder político diante desse cenário.

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O Brasil registrou no ano passado ao menos três homicídios, duas tentativas de assassinato e oito ameaças de morte contra blogueiros. Os casos somaram 37% do total de 35 violações em que a Artigo 19, ONG que conta com apoio do governo da Suécia, conseguiu estabelecer a relação entre o crime e a atividade profissional dos comunicadores.

Ítalo Diniz, de 30 anos, era assessor de prefeito e explicitava suas motivações políticas no blog, onde dizia ser movido pela “vontade popular de querer um veículo de comunicação que reivindicasse o direito do povo”. Dias antes de morrer ele havia dito a colegas em um grupo de WhatsApp que recebera uma ameaça de morte.

Uma semana depois, a 383 km dali, em Buriticupu (MA), o blogueiro Roberto Lano foi morto de maneira semelhante: baleado por um homem numa moto.

Seis meses antes, o blogueiro mineiro Evany José Metzker era decapitado em Padre Paraíso (MG) após se hospedar numa pousada para investigar denúncias de prostituição infantil.

Marcio Maranhão, de 30 anos, é um dos blogueiros que sofreram ameaças de morte. Escrevendo sobre política em Araioses (MA), na fronteira com o Piauí, ele diz ter a impressão de que “a democracia ainda não chegou no interior do Maranhão”.

Ele afirmou receber intimidações pelo celular e no telefone de casa. “Fizemos denúncias à polícia, mas não confiamos na polícia e no Ministério Público porque a experiência tem comprovado que estão todos de um lado só.”

Marcio reconhece que o blogueiro político muitas vezes não tem equilíbrio nem imparcialidade em suas publicações, e acaba entrando na guerra política local.

“Quando o blogueiro trata da microrrealidade é difícil não deixar de transparecer o que ele pensa”, disse ele à BBC Brasil. “Mas vejo como algo saudável, pois temos diversos blogs e cada um tem um posicionamento.”

Image copyrightReproducao
Radialista Djalma Santos da Conceição foi morto em maio de 2015 em Conceição da Feira (BA). Ele comandava um programa em rádio comunitária e era conhecido pela cobertura de crimes na região

A violência contra radialistas também avançou em 2015. Com dobro de violações do que o ano anterior, foram três profissionais mortos e três ameaçados de morte. Todos os casos ocorreram no Nordeste e em cidades com menos de 100 mil habitantes.

A ONG apurou que em todos esses casos os radialistas já haviam sofrido ameaças ou ataques – em 83% das ocorrências, as vítimas faziam cobertura política ou policial.

Aumento da violência

Os chamados ataques à blogosfera constituem apenas uma parte das agressões contra comunicadores no Brasil.

Além de blogueiros, os ataques vitimaram jornalistas ou repórteres (31%), radialistas (17%), donos de veículo de comunicação (6%), fotógrafos (6%) e chargista (3%, ou um caso).

Segundo dados compilados pela ONG, o total de casos cresceu 67% no Brasil em 2015 em relação ao ano anterior – a pesquisa é realizada desde 2012. Foram 35 casos: 22 ameaças de morte, sete tentativas de assassinato e seis homicídios.

Para a ONG, o quadro é “preocupante” – os homicídios dobraram ante o ano anterior. “Assim, 2015 passa a figurar como um dos anos mais violentos para o exercício da comunicação no país”, diz o relatório.

Image copyrightArtigo 19
Gráfico no relatório da ONG Artigo 19 mostra como maioria dos suspeitos das violações são agentes públicos; números indicam casos de homicídio (em vermelho), tentativas de homicídio (laranja) e ameaças de morte (amarelo)

O Nordeste concentrou 57% das ocorrências, superando o Sudeste (20% em 2015), que registrara mais casos em anos anteriores. Maranhão (7), Ceará e Minas Gerais (4), Bahia, Paraíba e São Paulo (3) lideram a lista. Cidades pequenas, de até 100 mil habitantes, registraram três de cada quatro desses crimes.

A metodologia da ONG contempla entrevistas com vítimas, colegas de trabalho e outras pessoas relacionadas aos casos. Em muitas das ocorrências, a organização acaba apontando motivações e autores diferentes daqueles indicados por investigações oficiais. “Isso porque priorizamos a impressão da vítima sobre acontecimentos e opiniões de pessoas ligadas a ela”, justifica o relatório.

Impunidade

A impunidade dificulta o combate do problema, diz a Artigo 19. Segundo dados levantados pela ONG, em 62% dos casos de 2015, as investigações não tinham avançado ou nem sequer começado até a última checagem, em janeiro deste ano.

Autoridades policiais também relataram à equipe do relatório que encontram dificuldades para apurar casos em que os prefeitos figuram como suspeitos, pois esses possuem foro privilegiado e as investigações são controladas pelos Tribunais de Justiça.

No caso específico dos blogueiros, embora homicídios tenham maior repercussão, a ONG diz que, em geral, são casos pouco divulgados, o que contribui para a continuidade do problema.

Processos judiciais contra blogueiros também são recorrentes, e decisões costumam cercear a liberdade de expressão de forma injustificada, considera a organização.

Reproducao
Cerimônia de sepultamento do radialista Israel Gonçalves da Silva, morto em Lagoa de Itaenga (PE); homicídio teria relação com denúncias que fazia contra crime organizado

“Os números do relatório mostram que o modus operandi segue praticamente o mesmo, com as violações por agentes públicos como forma de silenciamento de comunicadores que realizam denúncias”, afirmou, em nota, Paula Martins, diretora-executiva da Artigo 19.

“Nossa pesquisa identificou também uma generalizada falta de transparência nas investigações e um grave cenário de impunidade, reflexo da ausência de recursos e de negligência por parte do Estado brasileiro.”

O relatório faz 13 recomendações ao Estado brasileiro para combater a violência contra comunicadores, mas ressalta que boa parte delas já foi discutida com órgãos de governo e ainda não saiu do papel.

Entre as sugestões estão a produção de estudos periódicos para identificar causas e focos dessa violência e estabelecer diretrizes de atuação para diferentes instâncias de governo. Proteção imediata a comunicadores ameaçados, com um mecanismo nacional específico para esses profissionais, é outra recomendação recorrente.

Procurada pela BBC Brasil para comentar o relatório, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República não havia respondido até a publicação desta reportagem.

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