Regulamentação do Marco Civil da Internet: a chance desperdiçada

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Encerrou-se na segunda-feira  (29) mais uma etapa de consultas relativas ao Marco Civil da Internet. Dessa vez, o texto aberto a sugestões da sociedade era o do decreto que regulamentará a lei. Em vigor no Brasil desde 2014, o Marco Civil da Internet permanece até hoje sem regulamentação.

Tal demora justifica-se pelo amplo debate público que vem sendo promovido pelo Ministério da Justiça e outros órgãos – como o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e a Anatel – em torno da questão. Com efeito, a abertura de contribuições para a formulação do decreto foi necessária e oportuna para consolidar toda a metodologia participativa implementada no processo democrático adotado ao longo da construção da lei.

Segundo o Ministério da Justiça, durante a primeira fase da consulta, de 28 de janeiro a 30 de abril, foram computados mais de 44,8 mil visitas de usuários únicos, 339 tópicos de discussão sobre a regulamentação, e ainda 1,2 mil comentários. Entretanto, o texto do decreto que foi  à consulta acabou refletindo pouco o conteúdo das sugestões feitas.

As ausências mais evidentes dizem respeito às sugestões relacionadas à regulamentação do acesso e desenvolvimento da internet no Brasil. O tema foi simplesmente ignorado pela minuta de decreto em consulta. A ARTIGO 19, ao lado de parceiros , e sempre com o cuidado para não sugerir a criação  de novas obrigações não previstas na lei, fez 10 propostas sobre o assunto. Nenhuma está presente no texto.

Com relação à privacidade, importantes propostas sobre a implementação dos dispositivos da lei não foram acatadas. Entre elas estão a que define o conceito de autoridade administrativa que pode ter acesso a dados cadastrais ou a que trata da exclusão definitiva de dados fornecidos. De um total de 20 sugestões, o decreto em consulta só aborda três: 1) medidas e procedimentos de segurança dos dados; 2) fiscalização; e 3) mecanismos e instâncias de defesa.

Por fim, o papel atribuído a Anatel na minuta não considerou ponderações feitas sobre as camadas em que se estrutura a internet, a saber: a camada de rede física de telecomunicações; a camada de redes de provimento dos serviços de acesso à internet (classificados como de valor adicionado nos termos do art. 61º da Lei Geral de Telecomunicações e na Norma 04/95 do Ministério das Comunicações); e a camada de aplicações e conteúdos, que também não se classifica como telecomunicações.

Mais complicações

Um dos principais problemas do texto proposto são as novas complicações introduzidas à efetivação dos direitos previstos na lei. Há pelo menos três graves lacunas.

A primeira refere-se à exceção do parágrafo único, inciso II , do art. 2º. Embora se note a intenção de se excluir “intranets” do escopo do decreto, a proposição parece desnecessária, porque todo o Marco Civil versa sobre a internet e não sobre serviços especializados.

A segunda lacuna diz respeito à proposição de “tratamento de questões imprescindíveis para a adequada fruição das aplicações” como “requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações”, proposição esta demasiada abrangente. Na primeira fase da consulta, a ARTIGO 19 já havia apontado a dificuldade de definir qual pacote é mais sensível à latência. Seriam os de VoIP ? Ou o streaming de vídeo, como o Netflix e/ou Youtube? Dar margem aos provedores para interpretarem isso realmente não parece ser a melhor opção.

Por fim, os acordos tratados no primeiro parágrafo do art. 8º estão vedados em casos que “importem na priorização discriminatória de pacotes de dados”. Essa pode ser uma proposição problemática, pois também não há clareza com relação ao que seria discriminatório ou não. A redação do parágrafo deve ser melhorada para evitar essa dúvida, que invariavelmente será discutida em outras instâncias e pode representar uma quebra da neutralidade de rede.

Outros aspectos ainda podem ser apontados, como a falta de definições dos termos usados no decreto e as confusões conceituais entre serviço de valor adicionado e telecomunicações ao longo de todo o texto.

Lei de Dados Pessoais

Nota-se também incongruências com a minuta do anteprojeto da Lei de  Dados Pessoais, colocado recentemente em debate. O art. 5º do anteprojeto já define o conceito de “dado pessoal” como “dado relacionado à pessoa natural identificada ou identificável, inclusive números identificativos, dados locacionais ou identificadores eletrônicos quando estes estiverem relacionados a uma pessoa”.

No entanto, a minuta do decreto do Marco Civil da Internet também visa definir o que são “dados pessoais” e expande o conceito ao considerar como pertencentes à categoria os “registros de conexão e acesso a aplicações e o conteúdo de comunicações privadas”. Esta definição, porém, não está no texto do anteprojeto.

Assim, não parece ser adequado definir dados pessoais no decreto, já que essa definição deverá ser inserida em uma lei específica sobre o tema a ser em breve discutida pelo Congresso. Independente do mérito de abranger mais dados na definição e proteção de dados pessoais, vale lembrar que a inviolabilidade de comunicações privadas e o processo para requisição de registros de aplicações e conexão já estão definidos no texto do Marco Civil, o que inclusive poderá causar confusões nos processos de requisição de dados de maneira legal.

Ainda é possível ressaltar que o CGI.br parece ser a melhor alternativa consultiva nas questões mais técnicas que surgem na minuta do decreto. É por isso que, entre outras coisas, o art. 5º, em seus dois primeiros parágrafos, deveria dar mais destaque à ação do CGI.br.

No primeiro parágrafo, deveria ser dada competência consultiva para a melhor definição das “medidas técnicas que permitam diferenciação de classes de aplicações”, para além do texto que já define o respeito a padrões internacionais. Já no segundo parágrafo, no trecho “consideradas as diretrizes estabelecidas pelo CGI”, a palavra “consideradas” deveria ser substituída por “respeitadas”, a fim de não dar pleno e único poder à Anatel na apuração de infrações.

Em tempo: é  salutar a inclusão das disposições sobre transparência na minuta do decreto. Entretanto, para além das obrigações já previstas, é necessário divulgar quais dados de usuários de internet foram  solicitados, por qual autoridade, com qual motivação e qual a resposta recebida. Ademais, seria interessante frisar que o disposto não impede a solicitação de informações adicionais via Lei de Acesso à Informação.

Para a ARTIGO 19, caso o decreto não aborde ou modifique os aspectos mencionados acima, uma enorme chance de contribuição para o desenvolvimento da internet no país será desperdiçada. A ideia de participação social, para ser motivadora e força motriz de implementação de políticas públicas, não pode ser mera regularidade discursiva. Isto é, não basta haver um canal de exposição de ideias aberto, é  necessário que as opiniões sejam realmente consideradas e acatadas na formulação das políticas – nesse caso, no decreto de regulamentação do Marco Civil da Internet.

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