6 perguntas sobre os atentados em Paris e a liberdade de expressão

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1) Qual é a posição da ARTIGO 19 em relação ao ataque mortal contra a revista Charlie Hebdo no dia 7 de janeiro de 2015?

Esse ataque é a forma definitiva de censura. Ele teve como alvo silenciar jornalistas e comunicadores pelo trabalho que eles fazem, e isso é totalmente inaceitável.

Assassinatos e ataques a jornalistas não somente silenciam a voz daquela pessoa em particular como também priva o público de informação. Eles também silenciando e mandando uma mensagem de desencorajamento para qualquer um que queira relatar ou discutir assuntos controversos. Dessa forma, não se trata apenas de um crime contra indivíduos, mas também um crime contra a liberdade de expressão.


2) Algumas pessoas dizem que o governo deveria limitar o discurso considerado ofensivo a outros. Qual é a posição de ARTIGO 19 em relação a isso?

Seguindo padrões internacionais, a liberdade de expressão protege não somente pontos de vista e informações que sejam bem recebidas, mas também aquelas que algumas pessoas possam achar controversas, chocantes, ofensivas e insultantes. A mídia e outros têm o direito de publicar esse tipo de informação; e o público como um todo possui o direito de ouvir. É necessário incluir a liberdade de brincar, de não levar assuntos muito a sério, de fazer piada, exagerar, banalizar, satirizar e zombar. Isso é essencial em qualquer sociedade.

Não há um direito humano de ser livre de ofensa. No entanto, o direito à liberdade de expressão significa que aqueles que se sentiram ofendidos também possuem o direito de desafiar os outros através de um debate livre, uma discussão aberta ou através de um protesto pacífico contra aquilo de que discordam.

É importante pontuar que a liberdade de fazer declarações que ofendam, choquem ou incomodem não é uma licença para ameaçar outros. No entanto, qualquer restrição à liberdade de expressão precisa estar de acordo com os requisitos da lei internacional.


3) E as expressões que são blasfêmias ou que difamam alguma religião? Elas deveriam ser restringidas?

Não. Criticar e zombar de religiões, objetos ou entes religiosos pode ser considerado por alguns uma blasfêmia ou um insulto a suas crenças religiosas e sentimentos – no entanto, sob leis internacionais de direitos humanos, isso não é um argumento válido para banir ou censurar.
Leis internacionais protegem o direito de indivíduos e, em alguns casos, grupos de pessoas, mas não entidades abstratas como valores, religiões, crenças, ideias ou símbolos.

Tentativas de proteger religiões ou crenças da crítica utilizando leis internacionais através das ONU definitivamente falharam. Em abril de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU rejeitou o conceito chamado à época de “difamação de religiões” em uma resolução sobre a luta da discriminação de pessoas baseada em sua religião ou crença. (A/HRC/RES/16/18)

É importante frise que proibições de blasfêmia/difamação de religiões e proteção de símbolos e crenças não somente contrariam a garantia da liberdade de expressão como também são contraprodutivas e estão propensas a serem abusadas contra as minorias que pretendem proteger. Elas também podem ser contrárias à promoção da tolerância na batalha contra a discriminação.


4) Então isso significa que não há limites para a liberdade de expressão?

Não. A liberdade de expressão pode ser limitada somente em circunstâncias excepcionais. Leis internacionais declaram que a liberdade de expressão é a regra e as limitações são a exceção. Qualquer restrição precisa passar em um teste de três etapas:

I – Ser prevista em lei. A lei precisa ser acessível e clara para que possa ser entendida e para que pessoas possam regulas sua conduta de acordo.

II – Precisa ter um alvo legítimo, ou seja, proteger (a) os direitos ou reputação de outros, (b) a segurança nacional ou ordem pública, ou (c) a saúde ou moral pública.

III – A restrição precisa ser necessária em uma sociedade democrática e proporcional ao objetivo.
A lei internacional também requer que o governo proíba qualquer apologia do ódio que possa constituir incitação à violência, hostilidade ou discriminação (Artigo 20(2) do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos).No entanto, esse é um patamar muito elevado que dever ser tratado com cuidado.

A ARTIGO 19 desenvolveu um teste de seis etapas (endossado nos documentos da ONU como Plano de Rabat) para determinar se a expressão atingiu esse limite. Elas podem ser resumidas nas seguintes perguntas:

I – Qual o contexto da expressão?

II – Qual é a posição do autor e sua influência sobre sua audiência?

III – Foi intenção do autor ou do editor incitar outros à discriminação, hostilidade ou violência?

IV – Qual foi o conteúdo da publicação em questão que estava sendo explícita ou implicitamente defendido?

V – Qual foi a extensão e a magnitude da expressão?

VI – Qual era a probabilidade da questão defendida ocorrer, incluindo sua iminência?

5) A censura é aceitável quando a forma de expressão é o “ódio”?

Mesmo quando o limiar acima é alcançado, a ARTIGO 19 acredita que a censura deveria ser reservada somente nas circunstâncias mais excepcionais. O livre debate quase sempre se mostrará o meio mais efetivo de lidar genuinamente com o ódio e com as formas mais danosas de expressão. Garantir a liberdade de expressão para todas as pessoas e assegurar a diversidade e o pluralismo para que o ponto de vista de todas as pessoas possam ser ouvidos é essencial.

Frequentemente, certa expressão pode causar uma ofensa que pode levar à reação violenta de indivíduos. No entanto, a não ser que a expressão alcance o limiar descrito acima, são os indivíduos agindo de maneira violenta que devem ser detidos por suas ações, não quem estava se expressando.


6) As leis antiterrorismo devem ser mais rigorosas em resposta ao ataque contra a Charlie Hebdo?

Em tempo de crise, agentes do Estado frequentemente fazem promessas de aumentar a segurança. Mais frequentemente ainda, isso significa um maior controle do governo sobre nossas vidas e menos responsabilização (accountability) por esse aumento de poder. Experiências demonstram que isso inclui a violação dos nossos direitos à privacidade e nossa liberdade de transmitir ou receber diferentes ideias ou opiniões.

Em nossa experiência, antileis de segurança e de antiterrorismo são comumente muito abrangentes e não conseguem ser restritas o suficiente para lidar especificamente com ameaças genuínas à segurança nacional. Elas restringem a liberdade de expressão ou justificam a ingerência do governo em nossas vidas, sendo que o custo para nossas liberdades supera de longe qualquer suposto benefício.

Desproporcionalmente, essas leis, de forma intencional ou não, acabam tendo o efeito de atingir minorias e grupos impopulares, limitando inclusive o direito à liberdade de expressão deles. Essa discriminação levanta preocupações sérias em relação aos direitos humanos. Para além disso, elas podem estigmatizar e marginalizar ainda mais certos grupos, exacerbando outras violações aos direitos humanos e colaborando para divisões que prejudicam a segurança ao invés de promovê-la.

 

Foto: Emeline Broussard

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