Dois casos, um pesado legado para a liberdade de expressão no Brasil

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Cristian Goés, Camila Marques da ARTIGO 19 e Carlos Weis, defensor público do Estado de São Paulo – Washington

Recentemente a ARTIGO 19 esteve perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, expondo as suas preocupações relativamente à forma como o Estado brasileiro tem vindo a (mal)tratar a liberdade de expressão e o direito de acesso à informação no país.

De fato, não são poucos os casos que a organização tem vindo a retratar ao longo dos anos, através do trabalho do seu Centro Jurídico. No entanto, Outubro revelou-se como um mês de particular destaque, pelas piores razões.

A ARTIGO 19 vem desta forma alertar para duas decisões judiciais que nos relembram a importância da luta pela liberdade de expressão e pela liberdade de imprensa no contexto brasileiro. Dois emblemáticos casos na arena pública trouxeram as piores notícias para os seus intervenientes no mesmo dia, 22 de Outubro.

No caso de Jerry Oliveira, um ativista de rádios comunitárias, a 1ª Vara da Justiça Federal da Subsecção de Campinas/SP decidiu pela sua condenação na última terça-feira. A decisão surge no decorrer de um processo criminal que parte de uma denúncia da Anatel, em razão de uma diligência de dois de seus agentes, Celso Luiz Maximino e Márcio Rodrigues Maciel, instruídos a  encerrarem as atividades da rádio comunitária intitulada “Rádio 88.3 FM”, que operava na radiofrequência de 88.3 MHz na região de Campinas, sem a autorização da Anatel.

Jerry Oliveira defende que os agentes da Anatel não têm poder de polícia, e mesmo munidos dos instrumentos legais necessários, ainda não poderiam ter dado continuidade à ação. Como a própria Anatel reconhece, as operações de fiscalização/fechamento de rádios irregulares só podem acontecer se os agentes da Anatel forem acompanhados de agentes da Polícia Federal, configurando mais uma irregularidade em todo o procedimento. Em razão da irregularidade da abordagem dos agentes da Anatel, houve um desentendimento entre Jerry e os agentes, que posteriormente apresentaram queixa contra Jerry e, a partir disso, foi instaurado inquérito policial visando apurar a ocorrência, em tese, dos crimes de Calúnia, Injúria, Desobediência, Ameaça e Resistência.

A decisão que agora condena Jerry, ainda em 1ª instância e que pode ser recorrida, embora o tenha absolvido nos crimes de Desobediência e Calúnia, o condenou pelos crimes de Ameaça, Resistência e pelo crime de Injúria. Pelo fato de Jerry ser reú primário, a pena de 4 meses e 21 dias de detenção em regime aberto, pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos, que no caso foi definida como uma prestação pecuniária no valor de dois salários mínimos destinados aos agentes da Anatel/vítimas Celso Luiz Maximino e Márcio Rodrigues Maciel, na razão de um salário mínimo para cada.

A ARTIGO 19 entende que a condenação de Jerry de Oliveira pelos crimes mencionados, e em especial pelo crime de Injúria qualificado por ser contra servidores públicos, é completamente equivocada e afronta à liberdade de expressão. Justamente por se tratarem de funcionários públicos e, portanto, carrearem interesse público em razão de suas funções, deveriam estes indivíduos suportarem maior avaliação crítica da sociedade, e não serem mais protegidos pela lei. Assim sugerem os padrões internacionais, que também recomendam que a responsabilização por declarações ofensivas se dê na esfera civil e não na esfera penal, a fim de não inibir a liberdade de expressão e as críticas legítimas, especialmente quando são envolvidos agentes do Estado.

A sentença evidencia o uso distorcido dos crimes contra a honra calando a voz e a atuação de Jerry na defesa pela liberdade de expressão das rádios comunitárias e demonstra a fragilidade com que as rádios comunitárias operam, ante a ausência de uma política pública mais eficaz na efetivação de seus direitos. De realçar ainda, a importância deste tipo de meio regional de comunicação. As rádios comunitárias são uma ferramenta fundamental na vida da comunidade em que se inserem, particularmente em localidades mais pequenas, como é o caso. Casos como o do Jerry são também uma condenação para a liberdade de expressão e o acesso à informação destas populações.

No caso de José Cristian Goés do Estado do Sergipe, também no dia 22, surgiu a confirmação da sua condenação, pelo crime de Injúria. Sem que Goés ou o seu advogado fossem intimados e sem fazer a defesa oral como haviam pedido na turma de recursos, o Tribunal de justiça de Sergipe – atendendo ao desejo do seu vice-presidente desembargador Edson Ulisses, manteve a sua condenação de 7 meses e 16 dias de prisão por este escrever “Eu, o Coronel em mim”, uma crônica ficcional.

Nesse trabalho, o jornalista e sindicalista fala na primeira pessoa sobre o desdém e o desprezo de um Coronel sem nome em relação a conceitos democráticos tais como a liberdade expressão e de manifestação, referindo-se a “um jagunço das leis”. Apesar de nunca referir qualquer nome para este personagem, Góes foi acusado de injúria pelo vice-presidente do Tribunal de Justiça do Sergipe – Ulisses de Mello. Na sentença afirma-se que o artigo teve grande impacto “ofendendo a dignidade e o decoro do Desembargador”. Para além do processo criminal, decorre ainda um processo cível, com pedido de indenização por danos morais.

O processo tem sido caracterizado por diversas irregularidades comprovadas. Na decisão agora divulgada, o desembargador Hélio Neto provou com todos os fundamentos legais que o processo criminal foi irregular e ilegal e pediu a absolvição do reú, mas mesmo assim outros dois desembargadores – Maria Angélica e José Anselmo (suplente) – votaram contra o voto do relator e a condenação foi mantida por dois votos a um. Ainda, o também desembargador José Anselmo já havia julgado esse caso em outra instância e estava impedido de participar dessa votação. Cristian Goés e o seu advogado irão recorrer da decisão perante o  Supremo Tribunal Federal.

A ARTIGO 19 já havia denunciado o caso do jornalista José Cristian Goés, quando da emissão da sua sentença em Julho. A Artigo 19 alerta para o fato deste tipo de condenação criminal não ter apenas consequências pessoais, surtindo um efeito intimidatório que se tem agravado pelo cada vez mais frequente uso da via penal contra jornalistas e blogueiros.

Os padrões internacionais determinam que as medidas restritivas contra a liberdade de expressão devem ser as menos intrusivas possíveis, devendo-se sempre buscar o meio efetivo menos restritivo à liberdade de expressão. Ambas as penas são claramente desproporcionais ao direito à liberdade de expressão.

A ARTIGO 19 irá continuar o seu trabalho, acompanhando de perto ambos os casos e esperando melhores notícias para a liberdade de expressão, o acesso à informação e a democracia brasileira.

Para mais informações sobre a audiência temática na CIDH: https://artigo19.org/?p=3651

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